A última batida No prego
"Nem com boca férrea, bocas cem, línguas cem, pudera eu numerar da culpa
as formas, a variedade e os nomes dos castigos".
Virgílio, em Eneida, Itália
Ela estava lá. Como combinamos. De vestido de noiva. No meio da rua. Na chuva. Em pé.
Do seu lado direito, duas malas pequenas que eu haveria de carregar. Para sempre. À sua esquerda, uma poça de lama, que manchava a barra branca de seu vestido branco, de cetim branco e rendas brancas. Tudo manchado.
Parecia um passarinho pousado num fio de alta tensão. Eu me senti como um menino de bodoque na mão. Uma pedra só. Certeira.
Eu não me levantei. Eu não acenei. Eu estava lá. Mas não acenei. Era como se eu não existisse. O que dá no mesmo.
Era melhor para ela, ficar. Eu só ia porque precisava. Mas não tinha emprego. Nem conhecia ninguém no Recife. Na verdade, nem conhecia a cidade. O pouco dinheiro no meu bolso nem fazia volume. Não daria para nós dois. Ela sofreria demais. Pobre e fraca criatura. Ficaria em mim feito um prego. Furando. Dependente. Reclamando. Insatisfeita. Incompleta. E eu crucificado. A vida ia ser um inferno de todo jeito. Melhor assim.
****
Quando ela me deixou no altar e largou o braço do pai e correu pela nave da igreja e se jogou na luz da rua e mergulhou na chuva que açoitava a calçada, eu não entendi nada.
Eu a vi desaparecer num clarão e talvez, finalmente, entendi. Uma dor aguda transpassou meu olho várias vezes, como mil tiros de uma pistola de pregos.
Tive vontade de correr atrás dela, lhe segurar pelos cabelos e trazê-la a pulso, arrastada, aos gritos, de volta para o altar. De volta para mim. Fazê-la dizer sim.
Mas no outro minuto entendi que tudo estava acabado e que, portanto, tudo era inútil ou impossível. Inventei sacar a pistola de pregos e imaginei metralhar a sua pele inteira. Sua pele com cheiro de chuva. Bem ali, diante de todos os convidados, diante da imagem da Virgem Maria, e diante dos meus olhos cegos. Vislumbrei seu corpo todo a tremer, convulsionando, e seu vestido branco a ensopar de sangue, avermelhando.
Fervi minhas carnes na gana de fazer mil filhos em seu corpo até deformá-la e esquecê-la. E não mais reconhecê-la quando a encontrasse na rua, num domingo qualquer.
Mas fiquei parado no altar, parafusado no chão, apoiado no braço da minha mãe.
****
Eu estava lá. Na rua, parada, com os meus pés e a barra do meu vestido de noiva atolados numa poça de lama. As malas ao meu lado, sob o guarda chuva preto, inútil. Tudo inútil. Pingos grossos me açoitando. Um dilúvio, e eu a pé. A chuva pesada revolvendo a terra vermelha ao meu redor como um inferno de água.
Ele não estava lá. Ou não se fez ver. O que dá no mesmo.
Ele não acenou, como combinamos. A porta do ônibus da Viação Progresso não se abriu, como eu queria. Nem o sorriso dele se abriu. Nem seus braços.
E eu continuei parada, na rua, na chuva, na beira da poça de lama que crescia, como se fosse me engolir e me arrastar. E os meus sapatos brancos apertados, altos, encharcados, não me incomodavam mais. Nada me incomodava mais. Nem o prego quase solto do sapato novo já velho de tudo. O sapateiro também deixou de dar a última batida no prego e aquele prego também me assolava, me fustigava, me esfolava a carne.