José de Alencar, sobre a literatura:

"Palavra que inventa a multidão, inovação que adota o uso, caprichos que surgem no espírito do idiota inspirado".
Benção Paterna, 1872 - tem coisas que não mudam.




quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Uma leitura crítica de "A Metamorfose", de Franz Kafka (a personagem do livro x a biografia do autor x todo mundo)



A METAMORFOSE – uma proposta de leitura analítica por Nina Ferraz, em 667 palavras
 “A Metamorfose” é uma narrativa literária por excelência: a palavra é carne impessoal, transcende e se reveste de pele e significados. A fábula risível (um homem se transforma num inseto) atravessa os séculos e as fronteiras para ser uma obra atemporal da aldeia humana. O livro é tão verdadeiro porque Kafka sempre derrama um forte componente biográfico nos seus textos. É a comédia humana, a vida de qualquer "um qualquer", a cotidiana e esquecida, que segue de perto a história narrada, por mais absurda que ela seja. Questões universais como falta de ânimo e razão para viver, solidão, amor servil e desejo irrealizável são as sementes que Kafka vai jogando através de “A Metamorfose” dentro do juízo do leitor.
Analisando “A Metamorfose” pelo prisma das questões humanas confrontadas com a biografia do autor, as semelhanças entre Kafka e Gregor (protagonista de A Metamorfose) começam no fato simples de ambos viverem de atividades que não gostam e não apresentam perspectiva ou desafio. A fala explícita da personagem, cheia de enfado e resignação, afirma não gostar do que faz. Essa condição fria e burocrática de existir se faz presente até na escolha da linguagem: o jargão cartorial é uma característica do autor. Ele escreve: “haverei de refletir para ver se não movo uma ação estabelecendo reinvidicações que, ... acredite..., serão muito fáceis de fundamentar”...
Gregor (de sujeito) se faz objeto e afirma “sei que ninguém ama o caixeiro-viajante”. A solidão profunda e consciente é outra marca comum entre o criador e essa sua criatura. Os biógrafos dizem da solidão de Kafka. Mas, não importa quantos amigos você tenha no Facebook, a vida é uma viagem solitária. Em Gregor, essa solidão fica evidente no seu isolamento, em toda sua trajetória e na descrição detalhada da foto de uma mulher idealizada, recortada de uma revista, e pelo fato de, num dado momento, a moldura ficar colada no ventre do inseto, numa posição sexual. Kafka mostra, não diz.
Outra questão importante é o embuste do amor servil. Segundo Backes, uma situação típica em Kafka é a afirmação de que o homem avilta sua personalidade em favor da ordem superior. Sacrifica o gozo privado em favor do trabalho e da família, geralmente representada pela figura paterna. Sob certo prisma mais pessoal, não o do “Contrato Social” ou outros igualmente passíveis de arrazoamento, esse é o velho desejo de adequação, desejo de ser amado.  Kafka expressa esse desejo aberta e biograficamente em sua obra “Carta ao Pai” e o desenha em cores rutilantes em “A Metamorfose”. Através do cativeiro voluntário de Gregor, o amor servil (subserviência, dedicação e  abnegação) também é um tema do livro. O fato de Gregor não voar e não rastejar no teto (onde teria uma melhor visão e mais espaço) e seguir se arrastando penosamente pelo chão para não assustar a família e o fato de ele não atacar a despensa (mesmo morrendo de fome) são passagens que podem ilustrar esse ponto. Tem um trecho que ele fala que ficaria muito bem numa caixa, com furinhos para permitir sua respiração – querendo dizer que ele precisa menos de cuidados  ou afirmação e mais de aceitação.
Talvez esse amor servil seja o vértice que inflexiona a curva do desejo. Também como Kafka, Gregor sente um amor irrealizável pela irmã. Ela é sempre a figura mais presente junto a Gregor (e Kafka chegou a morar uns tempos com sua irmã Ottla). Inicialmente Gregor é responsável pela irmã, mas depois da metamorfose ela passa a cuidar dele. Se no início tinha atenção e cuidado, logo se estabelece uma relação de autoridade e dependência. No final, a irmã acaba dizendo querer que ele desapareça e ele morre logo em seguida, quase para lhe satisfazer a vontade.
Irrefletida vítima do desejo de adequação e de amor, o homem trai a sua própria natureza, resultando exatamente no oposto: inadequação ao trabalho, `a família e ao mundo. O isolamento, a melancolia e a incompreensão resultantes determinam um processo de animalização, isso é o que nos diz Kafka finalmente.

14 comentários:

FRANCO ALDO disse...

Oi, Nina.
Antes de mais nada, parabéns pelo blog e pela brilhante resenha sobre "A Metamorfose" de Kafka.
Em novembro, você me perguntou sobre de quem é a foto do "Boi Voador do Recife". Infelizmente, no momento, não posso te responder, pois estou viajando e só volto ao meu escritório em janeiro.
Mas, a foto foi publicada na revista "Nossa História", na edição Nº 7, ano 1, de 2004, da Biblioteca Nacional.
Assim que eu retornar, mando a informação.
Mais uma vez, parabéns pelo Blog.
Beijos.

Salete Cardozo Cochinsky disse...

Gostei de tua leitura
Kafka é um pensador que propõe uma reflexão do avesso do convencional. Vai profundo, trás a tona o dramático do ser humano.
Mais atualizado que Édipo porque revela-se num mundo onde a Lei, vai se construindo no próprio percurso de cada um.
Parabéns
Beijos e FELIZ 2012

Salete Cardozo Cochinsky disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Nina,

Não sou partidário de cruzar biografias de autores com seu trabalho, a mim, o autor é o ser encerrado entre a primeira e última página da obra, não tem existência fora deste universo; por mais tentador que seja traçar paralelos entre obra e biografia, é preciso lembrar que os grandes ficcionistas, são grandes mentirosos, tão bons falsificadores da vida, que forjam a própria história.

Eu teria cuidado em taxar a linguagem precisa de kafka de cartorial, pois o trecho citado é uma tradução, e do que consta-me do original em alemão, o uso da língua no extremo que faz kafka nada tem em comum com o linguajar notarial.

Na aparência vivemos em um mundo coerente, onde as coisas fazem sentido, na crueza do linguajar de kafka, as realidades são colocadas em conflito, Gregor com a família, Gregor com sua existência, Gregor com o ser inseto, com seu chefe, com a realidade e com o ser humano. Kafka cria panoramas críveis, para logo em seguida explicitar os absurdos conflitos inerentes, até que novamente uma realidade distorcida é criada e novamente destruída. Por este motivo acho as obras longas superiores aos contos, há espaço para uma maior escalada nas altitudes do impossível.

Abraço,
Alex

Nina Maniçoba Ferraz disse...

Oi, Ale

Obrigada pelo seu comentário. Adoro esse debate. Não citei as fontes no meu post para não ficar muito acadêmico, mas todas as ideias são fruto de leitura atenta da obra do autor e pesquisa delicada. Adorei fazer isso e me arrisquei, juntando tudo que aprendi em tão poucas linhas. Mas foi muito legal.

Mando para vocês algumas referências com relação aos pontos levantados:

1) linguagem cartorial como a linguagem característica de Kafka: isso é fato. Não li em alemão, mas vou citar Marcelo Backes, pois ele é tradutor conhecido de Kafka e é muito conceituado. Veja em "A metamorfose" da editora LP&M Pocket, pag 90 a nota do tradutor mostrando isso.

2) na pág 88 deste mesmo livro Backes faz um paralelo entre Gregor/Grete versus Kafka/ Otla, ou seja personagem e autor sendo comparados. Essa análise é inevitável na obra de Kafka.

Abraços

Nina Maniçoba Ferraz
www.ensaiosobreleitura.blogspot.com

Nina Maniçoba Ferraz disse...

Oi, Franco e Salete,

Obrigada pelos comentários.

beijos

Nina

kafka866 disse...

amo kafka

Anônimo disse...

Nina, uma ótima tradução desse livro é aquela feita por Modesto Carone, tenho certeza que a tradução é a mais fiel, pois os cursos de letras das melhores universidades brasileiras estudam através dessa tradução.
Enfim, vale ressaltar a relação entre o texto e a sociedade capitalista, questão que iria alicerçar melhor a sua análise.
Abraços.

Anônimo disse...

Obrigada, "Anônimo", pelo seu comentário. Conheço a tradução do Carone, mas as minhas marcações eu fiz na edição da LPM Pocket.
Gostei do seu comentário e queria saber quem você é, pode ser? Não sei se vc vai ver essa mensagem, mas se não se incomodar, gostaria de saber se vc tem blog.
Abraço

Nina Maniçoba Ferraz

Anônimo disse...

Gostei muito da resenha, ficou simples e didática. Acabei de ler o livro, na edição da L&PM Pocket, tradução de Backes e gostei muito. Fiquei impressionada com a literatura de Kafka, nunca tive a oportunidade de lê-lo antes e confesso que me identifiquei muito. Acredito que a grande maioria das pessoas já se sentiu assim. Esse desencanto com a vida, a falta de propósito, a culpa, o peso, o amor insuficiente...
Parabéns pelo blog.

Nina Maniçoba Ferraz disse...

Obrigada, Priscilla.
Este livro também é um dos que marcaram mais fundo em mim.
Vejo hoje que escrevi este comentário de forma tão resumida que só faz sentido mesmo para quem acabou de ler e pode preencher as lacunas com sua própria leitura.
Mas a maravilha é isso: achar quem curte e quem se incomoda com o que você pensa e tentou escrever.

bjs

Unknown disse...

Muito interessante sua exposição sobre a obra! Parabéns pelo excelente texto.

Rodrigo disse...

Gostei muito da resenha! Gregor me lembrou Mermieladov.

Bjs

Rodrigo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.