Um conto em homenagem a Túlio Carella
Filho de Ogum. de Nina Ferraz – São Paulo, maio 2011
Ele era filho de Ogum, orixá dos metais. Senhor de instrumentos e armas para agricultura, caça e guerra. Quem planta poda. Quem procura caça. Olho no olho, dente por dente. Ele era espada forjada no malho, de dois gumes, amolada. Mas sabia que passar ferro no ferro é desafiar Ogum. E que só podia acabar como acabou.
Homem bonito. Tinha um olhar fervendo destes que lambuzam qualquer pessoa. Andava no pescoço um patuá que ganhou ainda criança. O pai amarrou uma figa junto, bem rente na goela do menino. No que ia crescendo, a mãe aumentava o cordão. Mandinga forte.
Menino de ouro, não se metia em confusão, era obediente, concentrado. Mas lá pela idade de 10, virou outra pessoa. Parou de se dar bem com meninos e meninas. Calou-se. Ficava sozinho, cara fechada, testa perdida, os pensamentos vazando no vento, sem ninguém poder recolher. A mãe se preocupava todo dia que amanhecia. Vai brincar, menino! E se a noite era de silêncio, ela tentava calar o peito. Mãe é mãe. Foge. Mas sente. E reza. Rezava baixinho: ô meu Deus!
E ele foi crescendo. Encarava com um olho que não fita, fugido, disfarçado, mas tinha o corpo fechado, bem talhado, fruta de morder. Um dia, ele se pegou olhando para os homens do cais. Tinha vontades. E rondava. Rondava. Rondava. Feito fera enjaulada. Mais parecia um leão, atirado na cova de Davi. Mas não tinha mais fé que a providência divina o alimentasse.
Ele era um homem e queria um homem. Coisa escrita, destino. Cumpriu sua sina numa noite de lua cheia e maré alta.
A lua no céu nítida que nem desenho de criança. As águas do mar espumando. O vento soprando. As ondas vinham correndo para os seus pés. Benzedeiras. E limpavam o que houvesse. E agitavam a areia. E deixavam a terra alva e pura. Ele viu um caminho de luz clara na pele do outro. No riso daquele desconhecido íntimo. Naquele olho que brilhou no seu, cúmplice. E o rapaz achou o grito da calada da noite. E descobriu sua morada.
Mas amor assim é condenado ao fogo que deve queimar calado. Tem que lutar desigual, de capa e espada contra dragão. Profecia que não vem dos deuses, mas das gentes. O vaticínio: será eternamente e repetidamente feito brasa de embaúba que não tem. Que queima ligeiro. Madeira que é mole, enverga, não dá lança. Nem viga. Árvore que tem copa rala, que não dá sombra. Assim o sujeito vai. Ardendo no sol quente, de sol a sol.
E assim assim, feito num conto de bruxas, foi morrendo a paz e a calmaria. E o silêncio foi virando grito. Berros daquele homem que tinha voz agora e falava nele. Brado que ele não queria ouvir.
Acuou-se num canto resignado. Mas o homem alvo brilhava em pé, na lua. E esbravejava o que ele nunca quis saber. Cresceu nele aquelas certezas que a gente tem, mas sabe que não é. Dessas certezas turvas que cospem fogo e comem raiva. E a fúria gritou: Sou filho de Ogum! Deus negro da guerra. Também sou filho de São Jorge! Sou filho de Orixá de punhal e lança. Forja suas armas, Ogum! Agora é guerra.
Foi desse jeito que acabou um amor que ninguém viu e que ninguém pode dizer.
O sangue escuro do homem branco escorreu na terra alva e a maré baixa não lavou nada.