José de Alencar, sobre a literatura:

"Palavra que inventa a multidão, inovação que adota o uso, caprichos que surgem no espírito do idiota inspirado".
Benção Paterna, 1872 - tem coisas que não mudam.




quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Macumba Antropófaga, sobre a peça, para o Garapa Paulista

Fragmentária, Híbrida, Sincrética e Metafórica

Por Nina Ferraz

Assisti à peça espetáculo Macumba Antropófoga na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em julho passado, fazendo parte das homenagens ao escritor Oswald de Andrade (1890-1954). Já estava tão impregnada da fama do diretor José Celso Martinez Corrêa que, por mais exdrúxula que pareça a comparação, me senti como um católico que finalmente assistisse a uma missa celebrada pelo Papa.

Era tarde clarinha quando atravessei os muros que delimitavam o que a partir daquele minuto ia ser um teatro. Sentada na areia, me deparei com um monte de gente pelada, circundando um palco improvisado na praia. Sobre o palco, dois atores (vestidos) eram Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, entre outros predicados, autores do Manifesto Antropofágico e do quadro Abaporu, que em tupi-guarani quer dizer “o homem que come gente”. Encarnados por Marcelo Drummond e Letícia Coura, eles dançavam e brindavam à Semana de Arte Moderna (de 1922), quando começaram a tirar a roupa. A música gutural, a dança primitiva, a nudez, tudo me levava para uma celebração numa tribo longínqua, para um ritual que deveria surpreender a cada minuto. Mas isso não era surpresa.

Depois de vivas e brindes de absinto, a festa “civilizada” paulistana descia e se diluía na tribo. E Oswald era comido. Vale ressaltar que esse termo sempre era usado em dois sentidos: o da coabitação bíblica e o da comemoração gastronômica. Depois de digerido, incorporado, parecia que ele se transformava em Mário de Andrade ou em Macunaíma, ou nos dois. Afinal, onde está a linha entre o homem e a sua obra? Estava dada a metáfora perfeita e intrincada: definição de brasilidade e antropofagia. Na formação do que eu sou (brasileiro, humano) assimilo o outro, o autóctone, o estrangeiro e o bicho. Eu me aproprio do outro porque eu admiro sua força e coragem e quero assimilá-las ou simplesmente porque preciso dele para construir quem eu sou. O outro é o que eu não sou e também é o que eu sou, pois só na alteridade eu me defino. Ou nas palavras de Zé Celso: “Oswald é nosso grande descolonizador”.

Zé Celso diz que o que se explica não é arte. E assim a confusão reinou, deixando o público boquiaberto durante todo o espetáculo, que deve ter durado mais de três horas (eu perdi as contas). Sobreveio, como num dilúvio, uma sucessão de imagens fragmentárias e de cerimoniais de expiação e louvores. Apareceram em cena Maria Antonieta, D Pedro I, Napoleão, Freud, Rousseau, Montaigne e Buñuel… enfim tudo o que você imaginar que se moveu no mundo, entre Deus e o Dr. Nicolelis(Miguel Nicolelis, médico, cientista e escritor), que também aparecem na história. Mas não ficamos todos só de boca aberta. Algumas pessoas da plateia foram engolfadas pelo tsunami Zé Celso e acabaram nuas, dançando, incorporadas nos intestinos de uma festa para todos os sentidos. Perto do final, os atores passaram gloss na boca e distribuíram beijos na plateia. Uma atriz me beijou e eu me deixei beijar. Rápido, só lábios. Uma pequena transgressão para nutrir meu espírito selvagem assumidamente domesticado.

Se você vai no Teatro Oficina ver Macumba Antropófaga, não dá para dizer o que lhe aguarda, só sei que saí desta peça com um gostinho de espanto e de morango na boca.


terça-feira, 20 de setembro de 2011

Poema de João Cabral de Melo Neto, em "O cão sem plumas", Editora Alfaguara

Meus olhos têm telescópios
espiando a rua,
espiando minha alma
longe de mim mil metros.

Mulheres vão e vem nadando
em rios invisíveis.
Automóveis como peixes cegos
compõem minhas visões mecânicas.

Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto.

sábado, 10 de setembro de 2011

Imagine! 2 - continuação da crônica sobre a história do livro


Imagine!

Imagine quando a fotografia surgiu e o mundo ficou aterrorizado com medo da pintura se acabar. Imagine que o cinema já foi considerado o fim do teatro. E a TV seria o fim do cinema.
Nada disso aconteceu, obviamente,
mas essas expressões da arte são linguagens diferentes e não apenas veículos. Um exemplo claro de veículo é o vídeo: as fitas imensas foram substituídas por fitinhas minúsculas e depois pelo DVD, e hoje já se baixa um filme direto da TV ou da internet sem nenhum veículo palpável.

O livro é um veículo. Vai se acabar.

A literatura quando surgiu era de transmissão oral. Os aedos e rapsodos gregos invocavam as musas e recitavam tudo de memória. Sem necessidade de veículo algum. Nos menestréis, trovadores medievais, violeiros e contadores de história - a poesia e a música se misturam. Antigamente mesmo as narrativas eram rimadas, para se "cantar" louvores aos heróis. Para mim, poesia é para ser dividida, para ser lida em voz alta, cantada.

A fala é o principal instrumento. Literatura é ideia e emoção, arte para interagir na praça. Mesmo depois de surgir o livro (o objeto), muitas pessoas mantinham o hábito de fazer leituras em grupo, de lerem uns para os outros. De recitar. E acho que esse interesse está voltando. Que a literatura vai deixar de ser somente um deleite solitário, para ser também um prazer comunitário. E já é. Na cidade de São Paulo (dita a mais fria e objetiva do país) os saraus e os grupos de leituras se multiplicam como insetos num mundo subterrâneo. E as placas tectônicas estão sempre em movimento.

E assim, no mundo flutuante das ideias, muita coisa muda e outras são imutáveis. Hoje a gente vive o tempo do "vale o escrito" (ou nem isso), mas nem sempre foi assim. Embora a escrita já tivesse sido inventada, o filósofo grego Sócrates não deixou nada escrito de sua autoria. Até Platão via a escrita com desconfiança, ele só acreditava no diálogo como instrumento para criar e transmitir informação. Então o novo incomoda atá as mentes mais brilhantes.

O lance é que algo novo hoje aparece a cada segundo. E essa mobilidade da realidade pode ser assustadora. Estamos diante de séculos de conhecimento e arte, de medos eternos e certezas passageiras e de muita tecnologia nova. Mas o veículo não importa. Como Platão e Sócrates, para participar do mundo das ideias, só temos mesmo nossas vozes e o diálogo.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Imagine!



Imagine!

Eu estava lendo o Estadão de domindo (4/9/11) e pensei: Imagine os sumérios tendo que parar de desenhar sua impecável caligrafia nos tablets (de argila, claro!). E os escribas egípcios, tendo que largar mão de escrever no papiro?

Segundo o jornal, uma pesquisa realizada no Colégio Humboldt com 241 estudantes e mais alunos do Dante e de outras escolas concluiu que quase todos os adolescentes têm tablets (não de argila, claro!) e lêem e-books, mas ainda preferem livros de papel. Júlia, de 15 anos, completa: “tenho prazer em ver a prateleira cheia de livros”.

Entendo, Júlia, me identifico totalmente. Mas acho que somos a excessão. Hoje e no futuro esse desejo de “estante” se tornará completamente extinto, tão difícil de entender quanto o desejo de Cleópatra que era guardar “O Livro dos Mortos” em rolos de papiro, imagino.

Sou escritora. Gosto de pensar que produzo literatura e não livros, assim como um músico produz música e não CDs ou discos de vinil.

Mas a evolução/revolução na tecnologia do lápis e papel já começou e é inevitável. Ou continua. Johannes Gutenberg, por volta de 1439, inventou a prensa móvel (um protótipo da tecnologia moderna de impressão de livros). Imagine o escarcéu que causou entre os monges que passavam as suas vidas enclausurados nos mosteiros copiando livros! Eles imprimiam com sua letra rebuscada uma personalidade única aos escritos. Isso sim cai bem no conceito de fim do livro objeto.

Mas o passado deve ser conhecido para trazer luz ao presente e para diminuir o nosso saudosismo e sensação de iminência do apocalipse: o fim do livro, o fim dos leitores “de qualidade” e todas sorte de aberrações medievais que circulam na modernidade.

A verdade é simples e crua: a tecnologia vai resolver a questão da deterioração do livro eletrônico, da documentalização, da acomodação do aparelho visual `a tela durante a leitura... Tudo.

Certeza.

Nós, uma das últimas “gerações de papel” morreremos e as pessoas vão esquecer os livros como esqueceram os compact disks, as fitas K7, as tábuas de argila e os papiros. Inexorável.