Fragmentária, Híbrida, Sincrética e Metafórica
Por Nina Ferraz
Assisti à peça espetáculo Macumba Antropófoga na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em julho passado, fazendo parte das homenagens ao escritor Oswald de Andrade (1890-1954). Já estava tão impregnada da fama do diretor José Celso Martinez Corrêa que, por mais exdrúxula que pareça a comparação, me senti como um católico que finalmente assistisse a uma missa celebrada pelo Papa.
Era tarde clarinha quando atravessei os muros que delimitavam o que a partir daquele minuto ia ser um teatro. Sentada na areia, me deparei com um monte de gente pelada, circundando um palco improvisado na praia. Sobre o palco, dois atores (vestidos) eram Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, entre outros predicados, autores do Manifesto Antropofágico e do quadro Abaporu, que em tupi-guarani quer dizer “o homem que come gente”. Encarnados por Marcelo Drummond e Letícia Coura, eles dançavam e brindavam à Semana de Arte Moderna (de 1922), quando começaram a tirar a roupa. A música gutural, a dança primitiva, a nudez, tudo me levava para uma celebração numa tribo longínqua, para um ritual que deveria surpreender a cada minuto. Mas isso não era surpresa.
Depois de vivas e brindes de absinto, a festa “civilizada” paulistana descia e se diluía na tribo. E Oswald era comido. Vale ressaltar que esse termo sempre era usado em dois sentidos: o da coabitação bíblica e o da comemoração gastronômica. Depois de digerido, incorporado, parecia que ele se transformava em Mário de Andrade ou em Macunaíma, ou nos dois. Afinal, onde está a linha entre o homem e a sua obra? Estava dada a metáfora perfeita e intrincada: definição de brasilidade e antropofagia. Na formação do que eu sou (brasileiro, humano) assimilo o outro, o autóctone, o estrangeiro e o bicho. Eu me aproprio do outro porque eu admiro sua força e coragem e quero assimilá-las ou simplesmente porque preciso dele para construir quem eu sou. O outro é o que eu não sou e também é o que eu sou, pois só na alteridade eu me defino. Ou nas palavras de Zé Celso: “Oswald é nosso grande descolonizador”.
Zé Celso diz que o que se explica não é arte. E assim a confusão reinou, deixando o público boquiaberto durante todo o espetáculo, que deve ter durado mais de três horas (eu perdi as contas). Sobreveio, como num dilúvio, uma sucessão de imagens fragmentárias e de cerimoniais de expiação e louvores. Apareceram em cena Maria Antonieta, D Pedro I, Napoleão, Freud, Rousseau, Montaigne e Buñuel… enfim tudo o que você imaginar que se moveu no mundo, entre Deus e o Dr. Nicolelis(Miguel Nicolelis, médico, cientista e escritor), que também aparecem na história. Mas não ficamos todos só de boca aberta. Algumas pessoas da plateia foram engolfadas pelo tsunami Zé Celso e acabaram nuas, dançando, incorporadas nos intestinos de uma festa para todos os sentidos. Perto do final, os atores passaram gloss na boca e distribuíram beijos na plateia. Uma atriz me beijou e eu me deixei beijar. Rápido, só lábios. Uma pequena transgressão para nutrir meu espírito selvagem assumidamente domesticado.
Se você vai no Teatro Oficina ver Macumba Antropófaga, não dá para dizer o que lhe aguarda, só sei que saí desta peça com um gostinho de espanto e de morango na boca.